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Adega de Massandra – Crimeia

Por José Antônio Dias Lopes

Tive privilégio de conhecer em 1989 a monumental Adega de Massandra. Localiza-se na Crimeia, península na costa norte do mar Negro, que naquela época fazia parte da União Soviética. O mesmo acontecia com a Ucrânia, a cujo território pertencia. Estive lá na condição de correspondente da revista VEJA, acompanhando uma gigantesca greve dos mineiros de carvão. A Adega de Massandra era e continua a ser um dos mais extraordinários santuários mundiais do vinho. Recordo-a atrásra sensibilizado pela guerra na Ucrânia, o país que resiste heroicamente à invasão da Rússia.

Em 2014, o vizinho imperialista tomou-lhe a Criméia; desde o início do ano ambiciona anexar o país inteiro. Durante a realização da Copa do Mundo de 2018, na Rússia, postei no site da revista VEJA e aqui no Facebook uma crônica sobre a Adega de Massandra. A inspiração era o campeonato mundial de futebol disputado em Moscou, São Petersburgo e outras dez cidades daquele país. Republico-a atrásra, motivado pela deplorável guerra na Ucrânia, pois acredito que muitos dos meus leitores desconheciam o texto.

A ADEGA DO CZAR

O último czar, csar, tzar ou tsar da Rússia, Nicolau II (1868-1918), que os bolcheviques trucidaram com a família inteira, era um grande apreciador de bons vinhos. Importava da França o champagne Cristal e os melhores tintos de Bordeaux; de Portugal, encomendava Porto e Madeira. Gostava tanto de vinhos que patrocinou a fundação de uma enorme vinícola e adega na Crimeia, em 1894. Foi  construída pelo príncipe Knyaz Lev Goltsyn, nascido em uma família nobre originária do Ducado da Lituânia. Assim surgiu a Adega de Massandra, até hoje uma das maiores do mundo, na famosa península da costa do norte do mar Negro, pelo qual é cercada quase completamente.

Situa-se no município de Yalta, onde aconteceu a conferencia homônima, na verdade um conjunto de reuniões ocorridas entre 4 e 11 de fevereiro de 1945 que reuniu os chefs de governo dos Estados Unidos e da antiga União Soviética, junto com o primeiro-ministro do Reino Unido. O grupo selou o fim da Segunda Guerra Mundial e dividiu entre ele as zonas de influência na Europa. As uvas dos vinhos de Massandra procedem sobretudo dos vinhedos daquela zona, especialmente dos cultivados no assentamento urbano de Livadia. Ali, a natureza é pródiga: entre tantas virtudes, fornece em média 300 dias de sol por ano, que garantem a perfeita maturação das frutas.

A finalidade principal do complexo de Massandra era fornecer vinhos para o palácio de verão de Nicolau II. Foi erguido justamente em Livadia, por sinal o local exato da Conferência de Yalta.

Essa monumental adega foi dotada de mais de três quilômetros de túneis abertos na rocha por legiões de garimpeiros. Atualmente, guarda cerca de um milhão de garrafas com nomes diferentes.

Conserva brancos, rosados e tintos, velhos e novos, chamados de Tokay, Sherry, Katrásr etc.

As garrafas veteranas encontram-se empoeiradas e algumas ostentam no vidro a águia de duas cabeças do brasão do czar. Como se sabe, a temperatura ideal para se guardar brancos, rosados e tintos vai de 10º a 18º centígrados. As modernas adegas controladas por sistemas eletrônicos são climatizadas para mantê-los assim.

Na Adega de  Massandra, a temperatura dispensa o uso de qualquer equipamento: oscila naturalmente entre os 13 e 14 graus. Parece inacreditável, mas varia apenas um grau durante o ano.

Depois da tomada do poder, os bolcheviques – palavra de origem russa que significa “maioria” e denomina os seguidores do partido revolucionário comunista liderado por Lenin – empenharam-se em destruir tudo o que se referisse positivamente ao czar. A Adega de Massandra, porém, foi poupada da demolição. Prevaleceu o senso de tratar-se de uma preciosidade universal. Estatizada em 1922, recebeu proteção estatal de uma lei de 1936.

O ditador Joseph Stalin, que governou a extinta União Soviética durante a Segunda Guerra Mundial, apreciava seus vinhos. Quando o exército nazista de Adolf Hitler invadiu seu país, mandou esconder 60 mil garrafas da Adega de Massandra. Enviou-as para Tbilisi, capital e a maior cidade da Geórgia, a cerca de 1230 quilômetros de distância. Derrotados os alemães, devolveu-as ao berço natal. Na década de 1980, Mikhail Gorbachev, oitavo e último líder da União Soviética, aprovou leis severas de combate ao alcoolismo. Uma das medidas draconianas foi arrancar vinhedos e fechar adegas. Entretanto, o complexo de Massandra permaneceu intocado.

Em 1987, Gorbachev requisitou vinhos do ano do nascimento de Ronald Reagan, ou seja, da safra de 1911, para oferecer ao presidente norte-americano que visitava a Rússia. As garrafas desembarcaram em Moscou. Mas não foram servidas a Reagan. Os russos se divertiram. Brincaram que Gorbachev descobriu a tempo as verdadeiras preferências do presidente norte-americano: beber Coca-Cola e comer jujubas sem parar, as balinhas de goma adoradas pelas crianças.

Os vinhos tranquilos de Massandra também estão entre os mais longevos. Ultrapassam serenamente o centenário. Os preços dos mais antigos são obviamente espaciais. Em abril de 2018, a corretora Fine & Rare Wines, de Londres, ofereceu no seu site (https://www.frw.co.uk/) um Livadia Muscat Branco 1900 pelo equivalente a R$ 11.000,00, mais o imposto sobre o valor acrescentado aplicado no país (IVA). Era feito com uma uva célebre. A Muscat, Moscato ou ou Moscatel como a chamam em diferentes regiões do mundo, constitui uma variedade branca bastante antiga. Com ela são elaborados vinhos de alta qualidade, nos estilos doce ou fortificado.

Segundo a jornalista, escritora e crítica de vinhos britânica Jancis Robinson, em sua coluna semanal para o “Financial Times”, de Londres, e autora de um site atualizado diariamente (https://www.jancisrobinson.com/), “as videiras de Livadia fornecem os melhores vinhos de Massandra, entre os quais um Muscat pálido, doce e de longa vida, que tem gosto de essência de casca de laranja”. O Ocidente teve acesso a essas joias em 1990, quando a Sotheby’s, uma sociedade de vendas por leilão com sede na capital do Reino Unido, vendeu uma coleção de garrafas enviadas por Gorbachev para reforçar as finanças do país. Um segundo leilão aconteceu em 1991.

“Os vinhos eram enviados em caixas de metal que pareciam enormes arquivos”, comentou Jancis Robinson, que testemunhou a chegada do tesouro. O ex-banqueiro brasileiro Edmar Cid Ferreira, de São Paulo, conhecido por ter sido dirigente do extinto Banco Santos e pela valiosa coleção de arte, adquiriu uma quantidade não revelada, porém talvez uma dúzia de garrafas, em feito noticiado pela revista britânica “Decanter”.

O saudoso médico e experiente degustador paulista José Ruy Sampaio teve o privilégio de beber com Cid Ferreira e amigos de copo um Livadia Muscat Branco 1905. Relatou a rara experiência, transcorrida em uma sala da casa do anfitrião, decorada com quadros de Cândido Portinari e Di Cavalvanti, em artigo publicado na revista “Gula” (Edição nº 07, página 12, setembro de 1992, São Paulo, SP): “Jamais esquecerei aquele vinho”, escreveu ele.

”As sensações que me provocou ficarão gravadas para sempre na minha memória gustativa”, continuou Sampaio. “E, acima de tudo, protegidas do mundo exterior com o mesmo zelo com que a integridade de sua garrafa foi assegurada, primeiro pelos cossacos de Nicolau II, depois pelos agentes da KGB”. A seguir, finalizou: “O Livadia Muscat Branco nasce com 30 gramas de açúcar residual e 12,5 graus alcoólicos. É um vinho doce, de sobremesa, que pode ser bebido como aperitivo de fino gosto”.

Os vinhos da Adega de Massandra elaborados atualmente – a produção não parou sequer durante a Revolução de 1917, quando os comunistas chegaram ao poder – seguem feitos em massa. São 10 milhões de garrafas por ano, oferecidas a preços atraentes e consumidas pelo povo russo. A lenda diz que durante muito tempo a comercialização foi acompanhada pela KGB. O atual presidente do país Vladimir Putin abastece-se ocasionalmente das suas preciosidades, como acontecia com os dirigentes que o antecederam. O ex-primeiro-ministro italiano Silvio Berlusconi foi com ele visitá-la em 2015. Contou que Putin chamou-a na ocasião de Adega do Czar, fechando os olhos já naturalmente meio apertados, enlevado pelos goles de um dos seus vinhos raríssimos.

por José Antônio Dias Lopes