Onde teria nascido este prato antigo e delicioso? No farnel dos bandeirantes ou na cozinha dos povoadores do Vale do Paraíba?
Se fizermos o ranking dos pratos mais representativos da rica cozinha brasileira, o cuscuz-paulista merecerá lugar um cativo. Dividirá a honraria com a feijoada completa, campeã absoluta, o churrasco à gaúcha, a canja de galinha, a galinha ao molho pardo e a de cabidela, o leitão pururuca, as moquecas capixaba e baiana, a torta capixaba, o vatapá, o pato no tucupi, o frango com quiabo, o arroz de carreteiro, o barreado, o tutu à mineira, as farofas, o camarão à São Luís, a dobradinha, o picadinho meia-noite etc. Ufa, porém sempre se esquecerá alguma receita!
Sua variação mais refinada é o cuscuz de camarão, pelo fato de levar o cobiçado e caro crustáceo. Trata-se de um ingrediente que entrou no prato para requintá-lo e enriquecer o sabor. O mesmo aconteceu com outro coadjuvante, que já foi considerado chique: a sardinha em lata. Antigamente, precisava ser trazida de Portugal, pois não existia “made in Brazil”. Tanto que a Gomes da Costa, maior empresa de pescados enlatados da América Latina, fundada em 1954 no Rio de Janeiro, capitalizou a aura do produto importado. Anunciava a sardinha que industrializava com o slogan “sabor típico português”.
Em sentido amplo, o cuscuz-paulista é um bolo salgado à base das farinhas de milho e mandioca. Pode ser preparado no vapor, na boca do fogão, em recipiente especial de barro ou metal; ou em fôrma redonda para pudim; ou dentro do forno; ou, na versão heterodoxa, hoje frequente, em panela de pressão. Leva camarão, peixe ou sardinha em lata, azeite, cebola, tomate, pimentão, ovo cozido, azeitona, ervilha, salsinha, sal e pimenta-do-reino. Algumas receitas aconselham frango desfiado.
Alguns sustentam que o cuscuz-paulista surgiu espontaneamente no farnel dos bandeirantes – o saco para provisões que eles levavam em um guardanapo nas entradas e bandeiras. Essas expedições, formadas para explorar o território nacional e escravizar indígenas, começaram nos primórdios da colonização e terminaram em meados do século XVIII. Desamarrado o grande pano, estava tudo misturado e convertido no que viria a ser o cuscuz-paulista. “Portanto, surgiu como comida de tropa”, define o grande fotógrafo e exímio cozinheiro amador Pedro Martinelli, de São Paulo, adepto da teoria. “Os bandeirantes usavam na preparação as carnes dos porcos do mato, pacas, veados, jacus e antas que abatiam nas andanças”.
Outros julgam ser romântica a teoria da criação acidental bandeirante. Sustentam que o cuscuz-paulista nasceu na cozinha dos povoadores do Vale do Paraíba – a bacia hidrográfica que se estende em parte de São Paulo, ao longo de quase todo o comprimento do estado do Rio de Janeiro e parte de Minas Gerais. Teria como ascendente remoto o kuz-kuz ou alcuzcus, prato dos berberes, povo originário da África Setentrional. O “Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa”, porém, diz que a palavra veio do árabe kuskus. Seja como for, a receita foi assimilada por Portugal e trazida ao Brasil pelos nossos colonizadores.
A seguir, foi adaptada na mesorregião que compreende os atuais municípios de Caçapava, Jambeiro, Cunha, São José dos Campos, Campos do Jordão, Caraguatatuba, Guaratinguetá, Paraibuna, São Luiz do Paraitinga, Bananal e Queluz. Colonizadores lusitanos e brasileiros de primeira geração chegaram ali entre os séculos XVI e XVII, praticando inicialmente a agricultura de subsistência em roças e sítios que acabaram virando fazendas. O naturalista francês Auguste de Saint-Hilaire, viajando entre 1816 e 1822 pelo Vale do Paraíba, notou serem tão fortes suas culturas do milho e da mandioca que ajudavam a criar a identidade da cozinha brasileira.
Até pouco tempo, as cidades vale-paraibanas de Caçapava, Jambeiro e Cunha fabricavam o antigo cuscuzeiro de barro. Come-se o cuscuz-paulista como prato principal ou acompanhamento, às refeições ou fora de hora. Na tradição do Vale do Paraíba, o cuscuz é indispensável nos quitutes das festas juninas, sobretudo na de São João. Ocílio Ferraz (1938-2016), escritor, sociólogo e especialista nos costumes e tradições da região, afirmou que o cuscuz-paulista levava no começo apenas farinha, sal e pimenta-do-reino; depois, recebeu cebola, alho, as pimentas cambari ou dedo-de-moça e foi colorido com urucum. Já o fotógrafo Pedro Martinelli, que aprendeu a fazer cuscuz-paulista com a mãe e o prepara em casa quase toda semana, defende a autenticidade da receita criticando o acréscimo da sardinha em lata.
Voltemos aos desbravadores de São Paulo e de parte do Brasil. “Os bandeirantes nunca carregaram sardinha em lata”, prossegue Martinelli. “Portanto, não fez parte da receita original. Digo o mesmo do cuscuz que leva legumes e frango. Pode ser muito bom, mas não é o autêntico paulista”. As famílias de poucos recursos continuaram a usar lambari e manjuba, bagre, traíra ou acará, enfim, peixes do rio que atravessa o Vale do Paraíba. Também incorporaram carne de porco salgada e carne-seca bovina. E o que dizer do cuscuz de camarão? Admita-se, foi uma harmonização exemplar com os ingredientes preexistentes e significou um luxo. Obviamente, deve ter estreado nas cozinhas das famílias abonadas.
Imagine-se a dificuldade que significava transportar o camarão do mar, o tipo até hoje preferencial no prato, e não o de água doce. Precisava-se viajar no lombo de burro ou em carro de boi até o Vale do Paraíba. Desconhecia-se o conforto da refrigeração. No início do século XX, as geladeiras não passavam de armários de madeira isolados por placas de cortiça, que conservavam blocos de gelo. O camarão só alcançava as regiões distantes depois de salgado e seco. Hoje, com a rapidez do transporte e os avanços da refrigeração, chega fresco ou congelado. Quanto ao crustáceo da receita, escolhe-se o camarão pequeno para colocar dentro, até por economia, e o de tamanho grande vai na decoração.
Outros cuscuzes são feitos no Brasil com diferentes ingredientes, salgados ou doces, da Região Nordeste aos estados de Minas Gerais, Rio de Janeiro e Goiás. Todos descendem do prato criado na África Setentrional pelo povo berbere, distinto do árabe, desde o século XII convertido ao islamismo. Habitava a mesma região na qual se encontram atualmente o Marrocos, a Argélia e a Tunísia. Sua cultura continua viva nesses países.
“Há (na África Setentrional) cuscuzes de várias espécies: sobremesa ou gulodice, com mel de abelhas ou açúcar, com carnes, peixes, crustáceos, legumes, tâmaras, uva passa, valendo uma refeição completa, ou ainda molhado no leite de vaca, cabra, ovelha, camela, comida improvisada de viagem, um farnel abreviado e substancial”, informou o historiador e antropólogo brasileiro Luís da Câmara Cascudo, no verbete dedicado ao cuscuz do “Dicionário do Folclore Brasileiro” (Global Editora, São Paulo-SP, 2001).
Os berberes acompanharam os muçulmanos na invasão da Península Ibérica, iniciada em 711, que logo abrangeu a maior parte daquele território, só encerrada com sua expulsão em 1492. Ali introduziram o cuscuz, atualmente chamado de marroquino, uma espécie de farofa da sêmola ou farinha granulada de trigo. Desdobram-no em uma infinidade de receitas. No Marrocos, cada família prepara a sua, que passa de mãe para filha. Existe inclusive uma salada de cuscuz e uma sobremesa que combina a farinha de trigo com uva-passa, amêndoa, canela e açúcar. Atualmente, é prato nacional de todo o Magrebe ou Magreb, região africana que inclui Marrocos, Argélia, Tunísia, Líbia, Saara Ocidental, Mauritânia, Mali, Níger e Chade.
Gil Vicente, primeiro grande dramaturgo lusitano, além de poeta de renome, citou o prato na peça “O Juiz da Beira”, ou “Farsa do Juiz da Beira”, de 1525. Mas foi em nosso país que a receita trazida pelos portugueses virou bolo salgado. Além disso, mudou o ingrediente principal. Trocou a farinha de trigo, na época cara e difícil de ser encontrada por aqui, pela de milho, farta e barata; e, na variante paulista, entrou a de mandioca. Entretanto, “O Cozinheiro Imperial”, primeiro livro brasileiro de cozinha, traz uma receita com farinha de trigo na edição de 1874. Por aqui, temos ainda o cuscuz de mandioca, inhame ou arroz. Todas as receitas viraram exclusividades nossas, com o trotear do tempo. O cuscuz de camarão, entetanto, subiu à boleia.
CUSCUZ DE CAMARÃO
Rende 10 porções
INGREDIENTES
CUSCUZ
.1/3 de xícara (chá) de azeite
.1 cebola grande picada
.2 xícaras (chá) de tomates sem pele e sem sementes picados
.5 tabletes de caldo de camarão que serão diluídos em 1,5 litro de água (ou use 1,5 litro de caldo de camarão feito em casa)
.1/2 kg de camarões médios, limpos (reserve as cascas para usar no molho de camarão)
.1 xícara (chá) de palmito em conserva picado
.1/2 xícara (chá) de azeitonas verdes ou pretas bem picadas
.1 xícara (chá) de ervilhas em lata ou congeladas
.3 1/2 xícaras (chá) de farinha de milho
.Salsinha picada a gosto
.Sal a gosto
.Óleo para untar a fôrma
.5 camarões grandes e cozidos para a decoração
.Ovos cozidos cortados em rodelas, a gosto, para a decoração
MOLHO DE CAMARÃO
.As cascas de camarão que foram reservadas
.1,5 litro de água
.Páprica a gosto
.Sal a gosto
PREPARO
CUSCUZ
1.Aqueça o azeite em uma panela grande e junte a cebola até ficar transparente. Incorpore os tomates e refogue por3 minutos. Separadamente, dilua os tabletes de caldo de camarão em 1,5 litro de água ou use caldo de camarão feito em casa. Adicione o caldo à panela e cozinhe por mais 3 minutos.
2.Acrescente os camarões, o palmito, as azeitonas, as ervilhas e misture tudo. Se as ervilhas forem congeladas, passe-as no azeite e esquente-as um pouco antes de acrescentá-las ao cuscuz.
3.Por fim, em fogo baixo, coloque a farinha de milho, a salsinha, tempere com sal, se necessário, e mexa bem. Quando começar a ferver, cozinhe um pouco mais e desligue o fogo.
4.Unte com óleo uma fôrma de pudim, a que é furada no meio. No fundo, coloque os camarões grandes, intercalando-os com os ovos em rodelas.
5. Distribua por cima o cuscuz e aperte-o, de maneira uniforme, usando o dorso de uma colher. Deixe-o esfriar completamente dentro da fôrma.
MOLHO DE CAMARÃO
6.Em uma panela, leve as cascas de camarão para ferver na água aromatizada com páprica e sal. Em fogo baixo, reduza um pouco e depois passe pelo coador.
FINALIZAÇÃO
7.Depois que o cuscuz estiver frio, desenforme-o cuidadosamente, virando a fôrma na travessa.
8.Sirva-o com o molho de camarão e molho de pimenta adquirido pronto.
DICA
-Não cozinhe muito a farinha de milho na panela. Basta ferver, misturar um pouco e retirar do fogo. Caso passe do ponto, o cuscuz endurece.
Receita de Lígia Marcondes, editora do site gastronômico “Entre Pratos e Copos”, de São Paulo-SP.
IMAGEM
Cuscuz de camarão: foto do craque Gladstone Campos.
Dica de vinho para harmonizar
Para acompanhar um prato tão regional e cheio de personalidade um vinho rosé de corpo médio equilibrado com boa acidez. Sugerimos o Sassorosa IGT Biológico da Tenuta l’Impostino Toscana Itália.