O prato que Napoleão Bonaparte comeu após derrotar os austríacos em Marengo, hoje no território italiano, e por superstição passou a exigi-lo depois de todas as batalhas
Os revisionistas da história que metralham nossos heróis ancestrais, porque pensavam e agiam segundo as ideias do seu tempo, hoje renegadas, voltaram-se contra o imperador, estadista e militar francês Napoleão Bonaparte. Aproveitam-se das comemorações do bicentenário da morte do maior cabo de guerra dos tempos modernos. Ele morreu exilado a 5 de maio de 1821, na ilha britânica de Santa Helena, no Oceano Atlântico, a 1 870 km da costa oeste da África, depois de perder a batalha de Waterloo, na Bélgica. Lutou na ocasião contra as forças da Inglaterra e da Prússia. Os revisionistas acusam Napoleão de “racista e misógino”. Suas críticas dividem os franceses, entre os quais predominam os admiradores de Napoleão.
Apesar de vaidoso e egocêntrico, o famoso imperador forneceu munição aos críticos contemporâneos. Em 1802, Napoleão restaurou a escravidão nas colônias francesas, abolida em 1874. Também considerava o homem superior à mulher, supostamente “por não ir à guerra”, mas teve várias amantes. Em compensação, reorganizou a pátria esfacelada pela Revolução Francesa e devolveu o orgulho cívico ao seu povo. Deixou obras antológicas em Paris, como o Arco do Triunfo e largas avenidas; outorgou um código civil com seu nome, referência jurídica internacional; comandou vitórias militares. Derrotá-lo no campo de batalha era possível, porém difícil, pois o embate ocorria com um estrategista incomparável.
Um dos sucessos marciais de Napoleão foi a Batalha de Marengo, no Piemonte, ao norte da atual Itália, travada a 14 de junho de 1800. O exército francês bateu o austríaco, que dominava a região, obrigando-o a retirar-se. Foi uma vitória monumental, porque os franceses enfrentaram um inimigo numericamente superior. Durante a Batalha de Marengo, o carroção da intendência sumiu com os mantimentos das refeições dos generais. O cozinheiro desesperou-se, mas não esmoreceu.
Ordenou aos ajudantes buscarem nas redondezas os gêneros possíveis. Eles voltaram com um frango, três ovos, quatro tomates, seis camarões de água doce, alguns dentes de alho, um ramo de salsinha e azeite. Juntando um pouco de conhaque, o cozinheiro inventou um prato de combinações incomuns, batizado de Poulet Sauté Marengo (Frango Salteado Marengo). Caiu no gosto de Napoleão. Supersticioso, ele passou a exigi-lo depois de todas as batalhas.
Por muito tempo a criação da receita foi creditada ao chef de origem suíça François Claude Guignet, conhecido por Dunant. Havia cozinhado para a alta nobreza francesa do século XVII. Serviu de fato a Napoleão, mas só a partir de 1805. Portanto, não atuava no Q.G francês da Batalha de Marengo. Mais tarde, contribuiu realmente para equilibrar a receita. Trocou os camarões por cogumelos, o conhaque por vinho branco e incorporou croutons (pequenos cubos de pão dourados na manteiga). Napoleão, porém, vetou o aprimoramento, talvez por superstição. Para ser de bom augúrio, o prato deveria continuar igualzinho ao da Batalha de Marengo. Também chamada de Frango da Vitória, a receita do Poulet Sauté deu origem a variações consagradas pela tradição francesa. Apareceram o Vitelo e o Coelho Marengo, todas deliciosas.
Napoleão estava a léguas de ser um gourmet e alguns biógrafos até suspeitam que sofria de um tipo de anorexia, distúrbio alimentar capaz de levar a pessoa à obsessão pelo jejum. Alegava não conseguir “comer demais”. Alimentava-se pouco e rápido. Traçava os alimentos em poucos minutos, usando as mãos. Suas refeições duravam cerca de quinze minutos. Quando as fazia em casa, levantava e abandonava os parceiros de mesa. Mesmo assim, não era magro. No dia de sua morte, pesava 75,7 kg, media 1,67 metro de altura e tinha a barriga protuberante.
Na prática, preferia a comida pesada. De manhã, encarava ovos fritos, queijos curados e azeitonas temperadas. No almoço ou jantar, ia de batatas cozidas, lentilhas com chouriço, crépinettes (embutido de carnes variadas, envolvido pela membrana rendilhada que reveste a cavidade abdominal do porco); além de ragu de cordeiro com macarrão, pernil e costeletas de ovino. Seus cozinheiros se esmeravam nessas preparações, embora o patrão não reparasse tanto no prato. Um deles foi Marie-Antoine (Antonin) Carême, apelidado de “o chef dos reis e o rei dos chefs”. Primeiro cozinheiro celebridade do mundo, lançou o conceito da alta gastronomia.
Não parecia fácil satisfazer o gosto rude de Napoleão. Dunant conseguiu: criou para ele a Sopa do Soldado, uma legítima gororoba. Levava feijão branco, batata, legumes e, no final, incorporava pistou (condimento provençal semelhante ao pesto genovês, à base de azeite, alho, tomate e manjericão). Cozinhava-a com o mínimo de líquido, pois o imperador a exigia pastosa, quase um purê. A sopa ficava tão grossa que por alguns segundos sustentava no meio uma colher de pau, em pé.
Napoleão também não era grande entendedor de vinho. Por algum tempo bebeu os tintos da Córsega, sua ilha natal, a maior da França, situada no Mediterrâneo, a oeste da Itália, feitos com uvas nativas: a Nielucciu, a mesma Sangiovese da Toscana, e a Sciaccarellu. Por gosto e ainda movido pela superstição, passou-se para o tinto Chambertin, da Bourgogne, procedente de um dos melhores vinhedos da região. Hoje, chama-se Gevrey-Chambertin. Incorporou o nome da sua comuna. Napoleão o conheceu quando ainda era oficial de artilharia. Tornou-se um vinho tão importante para ele que seu fornecedor parisiense acompanhava o imperador nas campanhas militares.
Diz a lenda que, antes de morrer deportado na ilha de Santa Helena, Napoleão atribuía sua derrota na Batalha de Waterloo, a 18 de junho de 1815, ao fato de não mais beber Chambertin. Foi vencido pelo exército britânico do Duque de Wellington, e o prussiano do marechal-de-campo Gebhard Leberecht von Blücher. Entretanto, o vinho pode ter causado sua morte. Conforme uma investigação suíça, concluída em 2005, Napoleão morreu de câncer no estômatrás, e não envenenado com arsênico pelos britânicos, como se acreditava.
O estudo foi realizado por Alessandro Lugli, especialista em patologia anatômica do hospital universitário de Basiléia, em colaboração com o Instituto de História da Medicina da Universidade de Zurique. Os pesquisadores suíços consideraram “suportável” a quantidade arsênico encontrada no cabelo de Napoleão, que reforçava a tese do envenenamento. Atribuíram-na a uma prática dos vinicultores. Tratavam com arsênico a madeira dos barris da época. Outra explicação para a causa da morte de Napoleão foi que não havia Chambertin em Santa Helena. Os britânicos ofereciam-lhe apenas tintos de Bordeaux, que o ex-imperador dos franceses considerava “fracos demais”, por mais célebres e caros que fossem. Claro, ninguém é perfeito.
POULET SAUTÉ MARENGO
Rende 4 porções
INGREDIENTES
.1 frango de aproximadamente 1 1/2 Kg
.2 colheres (sopa) rasas de azeite de oliva
.2 colheres (sopa) rasas de manteiga
.150g de champignons
.2 dentes de alho amassados
.1/2 copo de vinho branco seco
.3 tomates sem pele, bem picados
.60g de extrato de tomate
.1 copo de caldo de vitelo
.8 cebolinhas pequenas
.1 colher (sopa) de manteiga (finalização)
.Salsinha picada a gosto (finalização)
.Sal a gosto
GUARNIÇÃO
.4 camarões temperados com sal, ligeiramente aferventados e reservados no calor
.4 fatias grandes de pão de forma fritas na manteiga
.4 ovos fritos
PREPARO
1. Corte o frango em pedaços, pelas juntas, tempere-os com sal e frite-os em uma panela, com o azeite misturado á manteiga. Alguns minutos antes do término do cozimento do frango junte os champignons.
2. Retire os pedaços de frango e os champignons da panela e reserve-os quentes.
3. Mantenha a panela no fogo, com os sucos do cozimento e introduza os dentes de alho amassados. Incorpore o vinho e reduza a dois terços. Complete colocando os tomates, o extrato, o caldo de vitelo e as cebolinhas.
4. Deixe ferver por uns cinco minutos e adicione a carcaça, as coxas e sobrecoxas de frango. Ferva por mais cinco minutos e coloque os pedaços do peito e as asas. Deixe mais um tempo no fogo, até o frango ficar bem macio. Junte os champignons e prove o sal.
FINALIZAÇÃO
5. Distribua os pedaços de frango e os champignons nos pratos.
6. Leve o molho da panela ao fogo, reduzindo-o se for necessário. No final, desligue o fogo, junte uma colherada de manteiga e misture. Coloque o molho sobre o frango e polvilhe a salsinha.
7. Guarneça os pratos com os camarões, as fatias de pão e os ovos fritos. Sirva imediatamente.
Sugestão do vinho para harmonizar com esse prato seria um bom Pinot Noir.
IMAGENS
1)Poulet Sauté Marengo, prato criado pelo cozinheiro de Napoleão Bonaparte após a Batalha de Marengo, na Itália (Getty Images)
2)Napoleão Napoleão após sua abdicação em 1814, pintura de Paul Delaroche (Domínio público)