OS VINHOS DE DANTE
Setecentos anos após fugir da Toscana, no centro da Itália, a família do autor de “A Divina Comédia” retornou à região natal – e para fazer vinho. Mudou para o Vêneto em 1300, acompanhando seu ancestral Dante Alighieri (1265-1321), onde o genial poeta e escritor florentino se refugiou para escapar da perseguição política que o condenou ao exílio. Desde a Idade Média seus descendentes vivem na comuna de Gargagnatrás di Valpolicella, na província de Verona, no Vêneto. Ali, o primeiro e maior poeta da língua italiana ficou exilado por alguns anos.
Os Alighieri foram acolhidos com honras no retorno à Toscana. Em julho de 2008, a câmara de vereadores de Florença revogou o exílio e concedeu aos descendentes de Dante, em gesto simbólico de reabilitação, a mais alta honraria da cidade, Il Fiorino D’Oro. Assim mesmo, a distinção foi aprovada por apenas um voto além do necessário. As bancadas socialista e comunista se opuseram à honraria, por considerarem “uma forma de beneficiar os herdeiros vivos de Dante”. O regresso dos Alighieri começou com a aquisição de 75 hectares em Cinigiano, na divisa com Montalcino (comuna onde é feito o famoso tinto Brunello).
O empreendimento ocorreu em parceria com Sandro Boscaini, presidente da Masi, renomada vinícola italiana. Foram plantadas as uvas Sangiovese, Canaiolo e Ciliegiolo, com a primeira safra colhida em 2004. O vinho porta-bandeira recebeu o nome Poderi Bellovile, um tinto Toscana IGT (reconhecimento de qualidade) de um vermelho rubi profundo com reflexos violáceos, rico bouquet de frutas silvestres e notas de alcaçuz. Encontra-se à venda na Itália e em vários países. A propriedade recebeu o mesmo nome: Poderi del Bello Ovile, tirado de um canto de “A Divina Comédia”, no qual o poeta exilado sonha regressar à terra natal: “Vinca la crudeltà che fuor mi serra del bello ovile ov’io dormi’ agnello, nimico ai lupi che li danno guerra” (“Vencer a crueldade que em prisão/ me exila do redil onde, cordeiro, /dormi oposto aos lobos que atacam”).
Uma mágoa de vinte gerações impedia que os Alighieri reatassem com a região de origem. Na verdade, a briga era com Florença, cidade na qual “il sommo poeta” nasceu. Dante militava no partido dos guelfos, uma aliança política inimiga de morte dos gibelinos, outra facção local. Derrotado, os vencedores obrigaram-no a exilar-se. Para escapar da execução e até de ser queimado vivo, o autor de “A Divina Comédia” passou o resto da vida foragido. Converteu-se no protótipo do exilado e transmitiu seus ressentimentos aos descendentes. No desterro, escreveu sua obra-prima.
Em 1320, Dante trocou a província Verona por Ravenna, na Emília-Romagna, onde morreu provavelmente de malária e foi sepultado. Há séculos os florentinos querem receber seus restos, mas não conseguem. Permanecem até hoje em Ravenna, na Igreja de San Pier Maggiore (mais tarde denominada Igreja de San Francesco). Após a morte de Dante, o juiz Pietro, um de seus três filhos, retornou a Verona e comprou, em 1353, a propriedade de Casal dei Ronchi, em Gargagnatrás. Até hoje a família reside ali, cultivando 130 hectares de terras.
Produz uvas, vinho, grappa, azeitonas, mel, castanhas, frutas, conservas e dois tipos de arroz: vialone nano e carnaroli. Acredita-se tratar-se do mais antigo vinhedo em exploração contínua do mundo. Seus tintos e brancos são hoje elaborados sob a direção técnica de Sandro Boscaini, da Masi, sócia dos Alighieri e consagrada pela qualidade dos tintos, especialmente pelo Amarone della Valpolicella, seco, e o Recioto della Valpolicella, doce.
O sobrenome Alighieri quase desapareceu no século XVI, quando o último descendente masculino do poeta, Francesco, ingressou na vida religiosa. Mas, convencido pela família, consciente do problema criado pelo voto de castidade que fizera, defenestrou o celibato e tratou de desrespeitá-lo. Convenceu uma mulher de Verona a ter um filho com ele – e foi à luta. A empreitada não teve o sucesso desejado.
Do relacionamento nasceram três meninas – e nenhum menino. Além de discriminadas nas sucessões, as mulheres de então perdiam o nome da família quando casavam, assimilando o do marido. Após reconhecer as filhas e conceder a cada uma o dote de 1 000 ducados, uma fortuna para a época, Francesco redigiu seu testamento. Destinou tudo o que tinha – inclusive Casal dei Ronchi – ao primeiro filho homem da sobrinha Ginevra.
A moça se casara em 1549 com Marcantonio Serego, agricultor progressista, introdutor da cultura do milho na região. O casal teve quinze filhos, nove dos quais homens. No testamento, porém, o padre Alighieri impôs uma condição. O menino teria de usar por último o sobrenome de Dante. Assim aconteceu. Em vez de Alighieri Serego, como seria natural, o primeiro filho de Ginevra assinou ao nascer Serego Alighieri. No século XX, a família enfrentou uma situação assemelhada. O conde Pieralvise Serego Alighieri, último descendente masculino de “il sommo poeta”, teve apenas duas filhas mulheres – e nenhum tio padre para tentar reverter a situação.
Outras histórias deliciosas ornamentam a saga dos Alighieri. Na Segunda Guerra Mundial, os alemães ocuparam a propriedade da família e nela instalaram seu quartel-general. Acuados pelo avanço das tropas anglo-americanas, prepararam a retirada. O alto comando nazista mandou explodir todas as munições que os soldados não pudessem carregar. Como havia muita coisa, a localidade inteira de Gargagnatrás iria pelos ares.
Mas o então patriarca da família, que coincidentemente se chamava Dante, era homem esperto. Convidou o general e o staff nazista para um jantar, em Casal dei Ronchi, onde serviu vinho à vontade. Os alemães comeram demais e se embebedaram. Enquanto isso, a população de Gargagnatrás jogava as munições na água de um canal. Nada ficou para ser explodido. Até hoje o episódio é relembrado com uma solene procissão religiosa anual.
A “Divina Comédia” se compõe de 14 233 versos e está dividida em três partes: o “Inferno”, com 34 cantos; o “Purgatório”, com 33; e o “Paraíso”, também com 33. A forma métrica é a “terza rima”. Acredita-se que “Paraíso” tenha sido escrito em Casal dei Ronchi. Lamentavelmente, os gulosos são maltratados na obra-prima. O poeta os coloca no “Inferno”, ao lado de outros pecadores. Em compensação, os descendentes de Dante sempre cultuaram a boa mesa.
A propriedade de Casal dei Ronchi inclui uma “foresteria”, a velha residência dos camponeses adaptada para pousada de luxo, com oito apartamentos e uma cozinha de primeira. Do fogão e do forno saem pratos magníficos, como o risotto ai piselli e pancetta, feito com arroz vialone nano, variedade típica da área de Verona, e uma torta de amêndoas doce, seca e saborosa, para ser partida com as mãos e comida aos pedaços, chamada sbrisolona.
Em compensação, Dante abençoava o vinho. Mencionou-o em “A Divina Comédia”, no canto 25 do “Purgatório”. Os Alighieri costumam declamá-lo às pessoas que visitam Casal dei Ronchi: “Com meu dizer tua mente se conforma,/notando que do sol calor em vinho,/da uva ao sumo unido, se transforma”, escreveu o poeta. Afinal, têm esse direito.
RISOTTO AI PISELLI E PANCETTA
Rende 4 porções
INGREDIENTES
.1 cebola pequena picada
.1 dente de alho inteiro
.1 colher (sopa) de azeite de oliva
.150 g de pancetta picada
.150 ml de vinho branco seco
.300 g de ervilhas
.380 g de arroz italiano vialone nano
.1,5 l (aproximadamente) de caldo de vegetais
.2 colheres (sopa) de manteiga
.4 colheres (sopa) de queijo parmigiano ralado
.Pimenta-do-reino moída na hora a gosto
.1 pitada de sal
PREPARO
1. Em uma panela, refogue a cebola e o dente de alho inteiro no azeite de oliva. Junte a pancetta e, assim que dourar, coloque o vinho.
2.Espere evaporar e adicione as ervilhas. Tempere com pimenta e sal. Acrescente o arroz, mexendo com uma colher de pau.
3. Descarte o dente de alho e junte uma concha do caldo quente. Deixe cozinhar, mexendo constantemente e colocando mais caldo, aos poucos, à medida que o arroz for secando.
4.Quando o risotto estiver cozido “al dente”, apague o fogo e junte a manteiga e o parmigiano ralado. Misture e sirva quente.
IMAGEM
Dante Alighieri no exílio, quadro de pintor desconhecido, Palácio Pitti, Florença, Itália.
Por J.A. Dias Lopes
Masi Campofiorin Rosso del Veronese IGT
Sugestão de vinho para harmonizar com este Risotto, que é produzido sob a direção técnica de Sandro Boscaini, da MASI, sócia dos Alighieri.