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SALADA RUSSA

por José Antônio Dias Lopes

Uma receita que a guerra nos faz lembrar, mas nada tem a ver com ela

Circula na internet um meme que brinca com a salada russa. Diz que alguns países ocidentais proibiram o seu preparo em solidariedade à Ucrânia, invadida pelo neoczar Vladimir Putin. A interdição baniria uma influência gastronômica russa. Mesmo que fizesse sentido, porém, seria impossível colocá-la em prática. A salada russa – hoje feita com batatas, cenouras e vagens cozidas, cebola picada e salsão idem, ervilhas em conserva, maionese e sal, às vezes pepino em vinagre, eventualmente um peixe, um crustáceo ou uma carne – caiu no gosto da humanidade. Trata-se de uma entrada deliciosa que ainda por cima nada tem a ver com a guerra. Antes pelo contrário.  Mas é de origem russa, sim.

Foi criada em Moscou, ne segunda metade do século XIX, por Lucien Olivier (1838-1883), chef de ascendência belga e formação francesa, coproprietário do elegantíssimo restaurante Hermitage, localizado diante da central Praça Trubnaya. Especializado em cozinha francesa, funcionou por 53 anos, de 1864 a 1917. Os garçons vestiam camisas com faixas de seda amarradas na cintura. Como era costume em Moscou, não eram patráss. Viviam das gorjetas oferecidas pelos clientes, que dividiam todos os dias com os colegas. Quem as retivesse era demitido. “Eles não recebiam salários e inclusive tinham que pagar ao empregador até 20% de seus ganhos”, informa Henri Troyat, no livro “Daily Life In Russia Under The Last Tsar” (Stanford University Press, Califórnia, EUA. 1979).

Apesar de conhecida internacionalmente por russa, a apetitosa salada não tinha apenas esse nome. Em seu país natal, chamam-na até hoje de salada Olivier. O mesmo sucede na Ucrânia, Irã e Estados Unidos. Os russos ainda a chamam de à polonesa ou stolichny (metropolitana). Na Alemanha, é conhecida por italiana; na Espanha, vira castelhana ou imperial. Na Argentina, batizam-na de ensaladilla ou ensalada rusa. Entretanto, se incorporar frango, converte-se em maionese de ave; ou maionese de atum, quando tiver esse peixe. No Brasil, converte-se em  salada de batata com maionese ou simplesmente salada de maionese.

Por que tantos nomes diferentes? A culpa foi do seu autor. Enquanto viveu, o barbudo, severo e taciturno chef Olivier procurou manter a receita secreta. Os cozinheiros que a copiavam, precavendo-se de problemas, tratavam de rebatizá-la. No início, Olivier montava no prato uma coroa com pedacinhos de peito de perdiz e codorna, cubinhos de gelatina feita com o caldo da carne de ambas as aves, mais camarão ao vapor. A maionese era à base de azeite provençal. Como decoração, usava trufa preta, fatias de ovo cozido e legumes em conserva. No centro do prato erguia uma pirâmide de batata cozida. Evidentemente, os ingredientes oscilavam conforme a disponibilidade do mercado e as estações do ano.

Olivier era um profissional à antiga, não zelava apenas pela comida. Preocupava-se com os bons modos dos clientes à mesa, a ponto de querer ensiná-los a comer. Certa vez, entrou no salão amplo e confortável do Hermitage um russo arrogante e pediu a salada. Ao recebê-la, remexeu-a com o garfo e traçou aquela mixórdia. Considerando aquilo uma heresia, Olivier passou a enviar o prato a todas as mesas devidamente misturado. Os clientes gostaram e o sucesso foi tanto que, a partir de então, o chef viu-se obrigado a apresentá-lo daquele jeito. Um dos que teriam aprovado a mudança foi o mais ilustre frequentador do restaurante: czar Nicolau II (1868-1918), aquele destronado pelos bolcheviques e, conforme historiadores, morto por ordem de Vladimir Lenin e Yakov Sverdlov. O soberano foi executado barbaramente em 1918, junto com a mulher, o filho, as quatro filhas, o médico da família imperial, um servo pessoal, a camareira da imperatriz e o cozinheiro da família.

Após o falecimento do chef Olivier, o Hermitage jamais conseguiu repetir a salada como ele fazia. É que seu inventor costumava esconder-se para fazê-la sozinho. Trancava-se numa sala ao lado da cozinha e só a despachava depois de completamente pronta. Um dia saiu da sala, em plena execução, chamado ao salão, e deixou a porta aberta. Então, seu principal colaborador entrou sorrateiramente e tentou desvendar o segredo da salada. De posse das informações, conseguiu emprego num restaurante concorrente. Mas a salada não ficou igual. Faltava-lhe alguma coisa.

Em 1904, um cozinheiro que trabalhara com Olivier, recorrendo à memória e aos depoimentos de pessoas que frequentavam o Hermitage, identificou vários truques da criação primitiva. Ao elaborá-la, acrescentou língua de vitelo, eliminou os cubinhos de gelatina e substituiu a trufa preta por caviar. Os clientes elogiaram o enriquecimento, porém reclamaram do sabor. “Não é o mesmo”, disseram. Suspeita-se que o verdadeiro diferencial estava na maionese, temperada com mostarda suave, um molho oriental, um toque de suco de nabo e algum destilado, provavelmente vodca.

Nos anos 1930, outro chef, dizendo-se aprendiz de Olivier, criou a salada stolichny, da qual deriva a receita contemporânea. Entre as inovações, trocou a perdiz pelo frango, acrescentou ervilha em conserva e carne de caranguejo. Quem adicionou a cenoura? Foi um cozinheiro esperto. Ele a introduziu para substituir a carne de caranguejo, mais cara e também rara em alguns lugares. “Os fregueses embriagados não se darão conta da mudança”, disse ele.

A salada russa é muito popular em seu país natal, onde tornou-se obrigatória nas celebrações familiares e indispensável na ceia de Natal, acompanhada de gomos de tangerina. A receita muda conforme a região, embora a batata cortada em cubos seja obrigatória. Em alguns lugares, são agregados pepino ao natural e arenque; em outros, carne de caça e, como tempero, vinagrete. Na Bessarábia, região histórica hoje dividida entre a Moldávia e a Ucrânia, vão cubos de beterraba. Isso lhe confere um atraente tom rosado. Na Europa Ocidental, a receita apresenta-se igualmente variada.

Os espanhóis apreciam tanto a salada russa que a transformaram em tapa. Os galegos a enriquecem com atum e a servem no mesmo elenco de tira-gostos. Na Espanha, é encontrada inclusive nos supermercados, dentro de embalagem plástica, pronta para cozimento rápido. Nesse caso, peca pelo sabor industrial. Como em quase tudo na boa cozinha, a melhor salada russa é a que se faz pouco antes de ser consumida. Enfim, seus únicos ingredientes indispensáveis são a batata e a maionese.  A Rússia, juntamente com a Ucrânia, Georgia, Armênia e Azerbaijão, contribuiu para o cardápio do mundo com outras receitas.

As mais conhecidas são o stroganov, stroganoff, strogonoff ou estrogonofe (Brasil), cubos de carne bovina servidos em um molho de creme de leite; o frango à Kiev, peito de frango recheado com manteiga e ervas finas, servido empanado, frito ou assado; blini,  panqueca tradicional com massa fermentada de farinha de trigo branco ou trigo mourisco, que vai à mesa com salmão ou caviar; smetana, espécie de creme de leite azedo, um acompanhamento para vários pratos russos; e borsch, borscht, borshtch ou borche, uma sopa de beterraba, que lhe confere forte coloração vermelha, cuja paternidade é reivindicada pela Ucrânia, também popular em diversos países do Leste Europeu, como Polônia e Romênia. Todas essas receitas datam de antes da Revolução Russa de 1917, que em matéria de boa comida foi zero à esquerda. Essa expressão, aliás, cai atrásra como uma luva. É usada para qualificar algo como uma nulidade Sua origem está na matemática, em que o zero à esquerda de um número não tem nenhum valor.

SALADA RUSSA

Rende 4 porções

INGREDIENTES

.4 batatas cozidas

.2 cenouras cozidas

.100g de vagens cozidas (prefira a vagem macarrão)

.1/2 xícara (chá) de ervilhas em conserva

.2 talos de salsão picados

.1 cebola (pequena) picada

.1/2 xícara (chá) de maionese

.Sal a gosto

.Salsinha para a decoração

PREPARO

1. Corte as batatas e as cenouras em cubos de 2 cm e corte as vagens em pedaços de 1cm.

2. Coloque tudo em uma tigela e adicione as ervilhas, o salsão e a cebola. Misture.

3. Incorpore a maionese e misture outra vez, delicadamente. Acerte o ponto do sal e leve à geladeira, por cerca de 4 horas.

4. Sirva gelada, com a salsinha da decoração.

Receita do livro “Dona Benta – Comer Bem”, da Companhia Editora Nacional, São Paulo SP, 75ª edição, 2003)

IMAGENS

1)    A salada russa como é preparada atualmente (Creative Commons)

2) Lucien Olivier, o criador do prato, e o salão do Restaurante Hermitage, em Moscou (Wikipédia)

Por José Antônio Dias Lopes

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