A mais nobre das bebidas pode ser ingrediente ou tempero de grandes pratos, entre os quais o clássico francês Coq au Vin (Galo ao Vinho)
Há séculos utilizamos o vinho na cozinha como ingrediente ou tempero. Também nos socorremos dele para marinadas, molhos e reduções. Recorremos tanto ao vinho branco como ao tinto, de baixo ou alto teor alcoólico, tanto faz. Ambos aromatizam, conferem sabor, amaciam e enriquecem os alimentos. Usamos os brancos em receitas mais delicadas, sejam de peixes, frutos do mar, verduras, legumes ou carnes leves. Os tintos são mais apropriados às classificadas como pesadas. Os dois tipos de vinho protatrásnizam clássicos da cozinha. Na categoria das carnes, destacam-se receitas sublimes.
A Espanha tem o Ternasco (cordeiro jovem) de Aragón al Horno, no qual uma paleta ovina é levada ao forno regada com vinho branco, sem a função exatamente de amaciá-la, mas de ressaltar-lhe o sabor, ajudada pela parceria do alho, batata, cebola, alecrim, tomilho e sal. É uma das receitas mais tradicionais e representativas da cozinha aratrásnesa, praticada no nordeste da Península Ibérica. Dificilmente outro país no mundo dispõe de um ternasco (que também pode ser chamado de cordeiro mamão, pois foi alimentado apenas com o leite materno e cereais naturais) mais tenro e delicioso do que o da Espanha, especificamente o aratrásnês.
A Itália possui o Brasato al Barolo, no qual um corte generoso do traseiro bovino (que no Brasil pode ser alcatra, lagarto, picanha, maminha ou fraldinha), marina no antológico vinho do Piemonte. Acompanham legumes cortados em pedacinhos, ervas e especiarias. Depois, vai ao fogo também por tempo prolongado. Cozinha na panela com a marinada, em temperatura média, a fim de dissolver lentamente o colágeno (proteína presente nos feixes das fibras dos músculos da carne), tornando-se macia, além de saborosa. Era um dos pratos que o chef piemontês Giovanni Vialardi (1804-72) preparava para o rei Vittorio Emanuele, primeiro soberano da Itália unida, epicurista assumido. Amava a boa mesa, o vinho Barolo, as mulheres de todas as condições sociais, os cavalos de andar, as viagens e as caçadas de animais silvestres.
Em Portugal, existe a Chanfana, receita de origem popular, tradicionalmente à base de carne de cabra velha. Atualmente, substituem-na muitas vezes pelo borrego (cordeiro com menos de um ano). Típica do centro do país, tem a carne temperada com alho, folhas de louro, pimenta, colorau e sal. Assa em caçoilas de barro preto, em característicos fornos a lenha, imersa no vinho tinto. Distritos, municípios e freguesias disputam quem a faz melhor. Miranda do Corvo, no distrito de Coimbra, intitula-se “Capital da Chanfana”; Vila Nova de Poiares, a cerca de 20 quilômetros dali, autoproclama-se “Capital Universal da Chanfana”.
Mas o prato de carne ao vinho mais difundido no mundo surgiu na França: o Coq au Vin. Pertence à cuisine bourgeoise, cujo acervo reúne pratos clássicos, não especificamente regionais, adaptados por anos ao paladar das elites. Garante-se ser originário da Auvérnia, no Maciço Central, que fazia parte da antiga Gália, dominada e convertida em província pelo Império Romano. Desde 2016, integra a Auvérnia-Ródano-Alpes, uma das 26 regiões administrativas da França. Suas fontes de água mineral e estâncias termais como Vichy atraem nos dias de hoje legiões de turistas.
Segundo os auvérnios, o povo da Gália que habitava a região do Maciço Central, o Coq au Vin foi saboreado pelo general romano Júlio Cesar, quando invadiu a região. Ao cercar uma vila ou cidade, supostamente Argóvia, a capital, ele recebeu um galo enviado por Vercingetórix, líder da resistência entre os anos de 53 a.C. e 52 a.C. O general romano teria respondido com um convite inusitado. Chamou o inimigo para um jantar, durante o qual havia o galo cozido no vinho da região. Vercingetórix inspirou a criação de Asterix, personagem da moderna história em quadrinhos e do desenho animado.
Outra versão situa a invenção do Coq au Vin no século XIX e envolve Napoleão Bonaparte. Conta que o imperador dos franceses e maior chefe militar dos últimos séculos, chegou sem avisar a uma hospedaria. O dono do estabelecimento ficou desesperado. Sua despensa estava vazia. Como dispunha apenas de um galo velho e cansado no quintal, de algumas cebolas e de umas garrafas de um tinto regional, improvisou o Coq au Vin para Napoleão matar a fome. O cliente inesperado apreciou tanto que até lambeu os dedos. Aliás, sua aprovação do prato consistia em outra surpresa. O imperador dos franceses era decepcionante à mesa: apreciava pratos gordurosos e indigestos. O Coq au Vin não se enquadraria em seu gosto. Como sentencia o provérbio brasileiro, “a fome é a melhor cozinheira”.
Traduzido para o português, o nome do prato vira Galo ao Vinho. No passado, quando o macho comandante do galinheiro desinteressava-se das fêmeas, perdia a autoridade em seu condado e enfraquecia o cocorocó na madrugada, acabava na panela. Cozinhava em um tinto da Auvérnia, elaborado com a uva Gamay. A função seria amaciar a carne sempre dura do galo, porém saborosa. Mas foi na cozinha da região da Bourgogne, cerca de 200 quilômetros dali, que o Coq au Vin consagrou-se definitivamente. O vinho mudou, passou a ser o Beaujolais, outro tinto feito com a Gamay.
Parte do sucesso mundial do Coq au Vin deve ser creditado ao escritor belga Georges Simenon (1903-1989), notabilizado pela criação do comissário Jules Maigret, um dos mais fascinantes investigadores da literatura policial, personagem de 75 novelas e 28 contos. Era um dos pratos que sua mulher, a Senhora Maigret (assim a chamavam, embora o nome fosse Louise), preparava para ele. Também Julia Child (1912-2004), influente autora de livros de culinária e apresentadora de televisão norte-americana contribuiu muito para a popularização do prato.
A internacionalização modificou a receita. Em vez de galo, difícil de encontrar nas cidades, recorre-se na França ao frango de Bresse. Ave doméstica grande e robusta, possui crista vermelha, pés azuis, penas brancas e carne saborosa. Recebeu em 1957 o prestigioso selo de Apéllation d’Origine Contrôlée. No exterior, opta-se por algum tipo de frango ou pela galinha. O cozinheiro escolhe. No Brasil, alguns chefs preferem a galinha caipira ou então o frango capão (castrado, que se alimenta compulsivamente, tornando-se bastante gordo),
O mesmo sucede com o vinho, que raramente continua sendo o Beaujolais. As receitas não indicam que tipo usar. Aconselham apenas um tinto e no máximo o sugerem seco. No entanto, em alguns países há o Coq au Vin Blanc (branco), menos prestigiado e provavelmente derivado do francês Coq au Vin Blanc d’Alsace, feito com um branco das uvas Riesling, Gewürztraminer, Pinot Gris e Pinot Blanc. Também existe na França o Coq au Vin Jaune, que leva o prestigiado vinho amarelado do departamento de Jura, próximo à fronteira com a Suíça, feito com a casta Savagnin.
O vinho revela intimidade histórica com a cozinha. Horácio (65 a.C-8 d.C.), poeta lírico e satírico romano, além de filósofo, inventou uma receita de molho que combina vinho, azeite e salmoura. Os bizantinos, cujo império se estendeu entre os séculos IV e XV, dispunham de uma preparação assemelhada, na qual adicionam pimenta, canela e nardo (planta aromática do Himalaia). A maioria das receitas do chef francês Guillaume Tirel, conhecido como Taillevent, autor de um dos primeiros tratados profissionais de cozinha, escrito no século XIV e publicado 100 anos depois com o título “Le Viandier”, valeu-se do vinho como tempero.
Joana d’Arc (1412-1431), camponesa e santa francesa canonizada pela Igreja Católica, heroína da França pelos seus feitos na Guerra dos Cem Anos, na qual lutou dizendo receber instruções de São Miguel Arcanjo, para livrar seu país do domínio da Inglaterra, colocava-o na sopa diária como tempero, notadamente em refeições feitas nos intervalos das batalhas. No Sul do Brasil, as pessoas idosas de antigamente faziam o mesmo. Derramavam algumas colheres de vinho na sopa para ficar mais gostosa e “limpar o sangue”.
O escritor francês Alexandre Dumas, Pai (1802-1870), autor de “Os Três Mosqueteiros” e “O Conde de Monte Cristo”, romances clássicos de capa e espada, tinha hábito semelhante. Considerava o vinho “parte intelectual” das receitas, especialmente nas de carne. Deveria ter falado “parte espiritual”, tamanho o efeito benéfico da mais nobre das bebidas, inclusive em nossa alma. Aliás, o Coq au Vin é exemplo que serve atrásra como uma luva. Dumas complementou assim a sua observação: “As carnes não são mais do que o lado material”.
COQ AU VIN
RENDE 4 PORÇÕES
INGREDIENTES
.1 frango capão de 2,5kg cortado pelas juntas
.Marinada (1 cebola picada grosseiramente, 2 cenouras picadas grosseiramente, 1 bouquet garni feito com raminhos de alecrim, 1 folha de louro, 3 dentes de alho descascados, 1 colher (chá) de sal e 2 garrafas de vinho da Bourgogne)
.100ml de óleo de milho
.50g de manteiga
.50g de farinha de trigo
.250g de cebolinhas pequenas e redondas
.250g de champignons de Paris grandes cortados ao meio
.Sal e pimenta-do-reino moída na hora a gosto
DECORAÇÃO
.Raminhos de alecrim para polvilhar
PREPARO
1.Em uma vasilha, coloque os pedaços de frango, com todos os ingredientes da marinada e deixe-os de molho nesses temperos pelo menos por 24 horas. Após, retire o frango e, separadamente, coe o molho da marinada.
2. Em uma panela, doure o frango no óleo previamente aquecido. Transfira-o para outra panela, junte o molho da marinada coado e cozinhe em fogo baixo por cerca de 2 horas, ou até o frango ficar macio. Reserve na própria panela.
3.Em uma frigideira, derreta a manteiga em fogo baixo e incorpore, aos poucos, a farinha de trigo, mexendo sem parar. Os ingredientes devem ficar bem misturados. Retire do fogo .
4.Cozinhe as cebolinhas e os champignons, rapidamente, em águas separadas. Escorra-os e junte-os à panela com o frango cozido. Tempere com sal e pimenta.
5.Adicione a mistura de farinha de trigo e mexa seguidamente, deixando o molho ferver e engrossar um pouco.
6. Disponha o frango em uma travessa com o molho, as cebolinhas e os champignons.
7.Decore com os raminhos de alecrim e sirva imediatamente.
Receita do chef francês Eric Berland, do restaurante Parigi, de São Paulo-SP.
IMAGENS
1)Coq au Vin – Foto Wikipédia
O vinho para harmonizar com o Coq au Vin seria um bom Pinot Noir como o Maison Baurboulot https://grandvin.com.br/produto/mison-barboulot-pinot-noir/ ou um excelente Bourgogne como o Château Villars Fontaine https://grandvin.com.br/produto/chateau-de-villars-fontaine-le-haut-du-village/