A Itália e os países influenciados pela sua apetitosa cozinha festejaram a 6 de abril, terça-feira passada, o Dia do Carbonara, prato famoso de massa originário do Lazio, a região de Roma. A receita manda prepará-lo com spaghetti, mas são aceitos outros formatos de pasta, como veremos adiante.
Motivo: o carbonara é uma das receitas mais preparadas desde o início da atual pandemia, quando comer em casa transformou-se em hábito porque as pessoas se encontram sob isolamento protetor e os restaurantes fecham a abrem pela mesma razão.Transcrevo a seguir o texto da VEJA, no qual fiz alguns acréscimos, pois no Facebook não estou sujeito à compreensível limitação de espaço da revista. Só posto atrásra porque esperei a VEJA circular. Sábado haverá nova edição da revista.
A MAMMA ESTAVA CERTA
SE NÃO É PARA SAIR DE CASA, porque as normas sanitárias impõem o isolamento social de modo a barrar a circulação do vírus devastador, não dá para frequentar restaurantes com a assiduidade de antes. O resultado é mais tempo na frente do fogão. A empresa norte-americana que controla o cartão de crédito Mastercard encomendou à agência independente Fly Research, de Londres, uma pesquisa sobre os novos hábitos. Foi realizada nos dois primeiros meses deste ano e ouviu 19 mil adultos em 19 países, entre os quais Portugal, Espanha, França e Itália.
Os resultados foram esclarecedores. Descobriu-se que em Portugal, por exemplo, 68% dos entrevistados dedicam nos tempos de pandemia quase três horas por dia à cozinha, 63 minutos a mais do que na vida anterior. O estudo mostrou, também, que as incertezas decorrentes das restrições impostas ao comércio, que abre e fecha por decreto, e o medo do desabastecimento, influenciaram na escolha dos ingredientes culinários.
Os carrinhos saem dos supermercados abarrotados de produtos que possam ser estocados por mais tempo. Há uma imensa variedade de pratos feitos em casa, mas predominam, como alento às famílias, as receitas tradicionais. O consumidor acuado procura refúgio em sua zona de conforto; houve, evidentemente, crescimento recorde dos pedidos delivery, no Brasil inclusive, com salto de 300%, segundo dados do Google recolhidos em 2020.
E, no entanto, o que aquece os corações e agrada o paladar, como registro de um tempo de enormes restrições, são as criações caseiras. Os portugueses preferem o bacalhau à Brás, os espanhóis as tortilhas, os franceses os crepes e os italianos as massas. Mas nenhum ganhou mais espaço no seu país de origem e no mundo do que o spaghetti alla carbonara, campeão em Roma, claro, mas também em cidades de vasta imigração italiana e de oriundi, como nova York e São Paulo, segundo constataram investigadores norte-americanos.
“Quanto à capital paulista, não tenho a menor dúvida”, avaliza o chef e restaurateur Sérgio Arno, do restaurante La Pasta Gialla, de São Paulo, um dos pioneiros da alta cozinha italiana no Brasil. “Já era prato da moda. Leva ingredientes que as pessoas têm em casa, é fácil de fazer e delicioso”. O chef e restaurateur José Alencar de Souza, do Santo Colomba, de São Paulo, outro craque na cozinha italiana, reforça a opinião do colega. “Na pandemia, as pessoas têm mais tempo para exercícios com uma receita fabulosa que as deixa muito bem alimentadas”.
A preparação do spaghetti alla carbonara começa com cubinhos de guanciale (a bochecha gorda e curada do porco) sendo dourados em uma frigideira grande. Na falta, usa-se a pancetta (a barriga do suíno curtida no sal, temperada e seca). Cozinha-se a massa em água temperada com sal, escorre-se e pode-se despejar na própria frigideira quente, misturando-a ao guanciale. A seguir, adiciona-se um molho cremoso à base de queijo ralado, pimenta-do-reino e ovos, que cozinha rapidamente no calor da massa. Segundo os romanos, admite-se no máximo trocar o spaghetti por vermicelli, bucatini ou penne. O resto é heresia.
Toda a alteração é tratada belicosamente pelos italianos. Em fevereiro deste ano, o jornal norte-americano “The New York Times” publicou uma receita “revisitada” do carbonara. Chamou-a de Smoky Tomato Carbonara. Acrescentou-lhe um ingrediente que os italianos adoram, o tomate, porém banido no carbonara. A receita ainda trocou o guanciale ou pancetta pelo bacon, igualmente vetado, ressaltando conferir “um belo toque de fumaça”. Os italianos perderam a paciência.
“Americanos, parem com essa loucura”, disparou um internauta. O chef romano Alessandro Pipero, proclamado “rei do carbonara“, rebateu o “The New York Times”. “Carbonara com tomate não é carbonara; e usar bacon equivale a fazer um sushi com mortadela”, declarou ao jornal “Corriere della Sera”, de Milão. A influente revista de gastronomia “Gambero Rosso”, de Roma, embora sem mencionar o “The New York Times”, pediu a três chefs italianos que ensinassem ao mundo suas receitas de carbonara. Só divergiram nos ovos do molho, se devem ir com ou sem as claras.
O carbonara, enfim, será sempre motivo de controvérsias. Em 2020, o chef escocês Gordon Ramsey, dono de restaurantes e apresentador na televisão de reality shows, já havia sido chamado de “falsificador” pelos italianos: ousou propor que a receita trocasse o guanciale pelo salame. Fiéis à sua tradição, eles não aceitam mudanças. Sustentam que o prato surgiu no final da Segunda Guerra Mundial e deve continuar como é; que Roma estava na miséria quando o 5º Exército dos Estados Unidos a ocupou, em junho de 1944, comandado pelo então tenente-general Mark Clark (1896-1984), comandante do 5ª Exército dos Estados Unidos, logo após a retirada das tropas invasoras nazistas da cidade. Só os soldados norte-americanos dispunham de alimentos.
Um grupo de militares de Mark Clark foi a uma trattoria do Vicolo della Scrofa, no Centro Histórico de Roma, levando rações recebidas para o campo de batalha: macarrão instantâneo, ovos em pó, fatias de bacon – e pediu ao cozinheiro que as preparasse. Quando os soldados receberam a comida na mesa, misturaram tudo e colocaram sobre a massa, inventando acidentalmente o prato. Diz a lenda que, na falta de uma frigideira grande, o cozinheiro usou um capacete militar.
Alguns historiadores da gastronomia, porém, contestam essa versão. Afirmam que o prato é uma evolução da veterana receita de cacio (queijo de ovelha ou cabra) e ova (ovo), originária do Lazio; ou de outra parecida, da vizinha Abruzzo, que os carbinai (carvoeiros, produtores de carvão vegetal) preparavam na véspera do trabalho e levavam fria para a mina. Durante a ocupação da capital italiana pelos nazistas, muitas famílias romanas se refugiaram em localidades do Lazio e nas montanhas de Abruzzo. Assim teriam assimilado a receita de cacio e ova. Uma explicação para o nome carbonara: o acréscimo de pimenta-do-reino moída, que lembra carbone (carvão, em italiano).
Outros associam o spaghetti alla carbonara à sociedade secreta Carboneria, fundada na Itália por volta de 1810, que atuou naquele país, na França, Portugal, Espanha, Brasil e Uruguai, defendendo ideias patrióticas, liberais e anticlericais. Entretanto, faltam provas de que preparasse a receita de massa. O diretor de cinema Luigi Magni aumentou a confusão no filme “La Carbonara”, ambientando-o na Roma papal. Colocou em cena uma mulher que administra uma trattoria dedicada ao preparo do spaghetti alla carbonara.
Segundo a “Grande Enciclopedia Illustrata Della Gastronomia” (Selezione dal Reader”s Digest, Milão, 2000), “os traços deste prato na cozinha romana, antes do final da Segunda Guerra Mundial, são vatráss ou inexistentes e se limitam a alguns testemunhos orais, recolhidos porém em tempos recentes”. Mesmo assim, os historiadores da gastronomia a que nos referimos discordam. Um grupo credita a invenção da receita a Ippolito Cavalcanti (1787-1859), cozinheiro e literato napolitano. Ele a teria publicado no tratado “Cucina Teorico Pratica”, editado pela primeira vez em 1837 e acrescido, na edição de 1839, do apêndice “Cusina Casarinola co la Lengua Napolitana”.
Curiosamente, há uma história paralela do prato envolvendo o Brasil. O historiador, cientista político e gastrônomo João Ferraz, de São Paulo, enquadrou e afixou na parede de casa uma joia: a receita de spaghetti alla carbonara escrita por sua madrinha, Lina Bo Bardi (1914-1992), arquiteta modernista romana, radicada em nosso país, conhecida por projetar o belíssimo Museu de Arte de São Paulo (MASP). Ela chegou à cidade em 1946 já sabendo preparar spaghetti alla carbonara.
Quem ensinou a receita a Lina Bo Bardi? “Seu conterrâneo e amigo Roberto Rossellini (1906-1977), um dos mais aplaudidos cineastas do neorrealismo italiano”, informa João Ferraz. Por sinal, o diretor do filme “Roma, Città Aperta” (“Roma, Cidade Aberta”), ambientado justamente no período da ocupação nazista da cidade, fazia o prato para receber amigos. Além disso, o spaghetti alla carbonara teria sido protatrásnista do seu rompimento sentimental com a temperamental atriz Ana Magnani.
Ela teria pousado na cabeça de Roberto Rosselini, em gesto ciumento, o prato de spaghetti alla carbonara que saboreava em um restaurante romano. O parceiro de amor e de mesa acabava de receber um telegrama apaixonado da atriz Ingrid Bergman (1915-1982), com quem se casaria depois, finalizado com esta declaração: “Ti amo”. Se naquela época o prato já era saboreado pelos romanos, sua criação precederia à chegada em Roma dos soldados de Mark Clark, em 1944, pelo menos em tese.
Até atrásra, porém, a explicação mais convincente e difundida para a invenção do spaghetti alla carbonara provém, reafirme-se, da Segunda Guerra Mundial. Trata-se de uma ascendência que confere ao prato atualidade simbólica. Nossa luta contra o vírus da pandemia também é uma guerra – e se ela tornou-se inevitável, que seja acompanhada de uma massa deliciosa, capaz de fazer sorrir até a mamma.
SPAGHETTI ALLA CARBONARA
Rende 4 porções
INGREDIENTES
.320 g de spaghetti de grano duro n. 5
.150 g de guanciale (na falta, use pancetta)
.20 ml de azeite extravirgem de oliva
.150 g de queijo pecorino
.70 g de queijo grana padano
.8 ovos caipiras fresquíssimos
.Pimenta-do-reino moída na hora a gosto
.Sal grosso (para a água da massa)
.Grãos de pimenta-do-reino (para a decoração)
PREPARO
1. Corte o guanciale em cubos de 1/2 cm e doure-os no azeite, cuidando para não secarem. Apague o fogo e reserve.
2. Rale os queijos e coloque-os em uma tigela funda. Adicione 4 gemas, 4 ovos inteiros e uma generosa quantidade de pimenta-do-reino. Misture tudo até obter um molho cremoso e liso.
3. Leve ao fogo uma panela com água (a proporção ideal é 2 litros de água para cada 100g de massa e 10 g de sal grosso para cada litro de água). Assim que a água ferver, coloque o sal e em seguida a massa. Escorra-a após 11 minutos, reservando uma xícara da água do cozimento.
4. Despeje a massa (com a água reservada) na frigideira, com a pancetta, leve ao fogo e misture até a água evaporar completamente.
5. Retire a frigideira do fogo e coloque sobre a massa o molho de queijo e ovos, misturando para que o queijo fique bem incorporado à massa. A ação deve ser rápida, para evitar que os ovos cozinhem demais. Não é necessário colocar sal.
6. Se desejar, polvilhe mais um pouco de pimenta-do-reino, decore com os grãos de pimenta e sirva imediatamente.
Receita preparada por Marco Renzetti, chef romano radicado em São Paulo, SP
Sugestões de vinhos que harmonizam com o Carbonara. Seria muito interessante um bom branco da uva Vermentino da Toscana o Tenuta l’Impostino o Ballo Angelico IGT Biologico